Márcio Holland: promessas de um mundo melhor

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Os argumentos para defender propostas de reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional carecem de transparência. Os defensores e seguidores de plantão da PEC 45/2019 prometem aumentar o PIB potencial em 20%, em 15 anos. Já os defensores da PEC 110/2019 garantem que a carga tributária vai cair 7% do PIB. Ou seja, parem tudo e aprovem logo essas duas iniciativas! Entramos em um jogo de “quem dá mais”.

Estudo encomendado pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) [Braúlio Borges, 2020, Impactos macroeconômicos estimados da proposta de reforma tributária consubstanciada na PEC 45/2019], entidade proponente e defensora incondicional da PEC 45/2019, com ou sem pandemia, faça chuva ou faça sol, encontrou “resultados expressivos” de impactos da reforma sobre o PIB potencial do Brasil, de 20,2%, em 15 anos, e de 24%, no longo prazo.

De acordo com o estudo, “esse impacto decorre principalmente do aumento da produtividade total dos fatores (14,4% em 15 anos e 16,4% no longo prazo) e do aumento dos investimentos em ativos fixos, que geram uma elevação do estoque de capital de 12,0% em 15 anos e de 15,6% no longo prazo.”

Todo esse espetáculo de crescimento aconteceria por obra e arte dos efeitos da medida sobre quatro variáveis exógenas, a saber, o Índice Business Regulations do Fraser Institute, um indicador de dispersão de alíquotas efetivas de ICMS, que captaria uma provável redução das diferenças de alíquotas de ICMS praticadas pelos estados e, assim, redução da “guerra fiscal”; a terceira variável seria uma medida de reversão dos chamados “gastos tributários”, ou seja, o fim de renúncias com programas como Simples Nacional e a Zona Franca de Manaus. Afinal, com a PEC 45/2019 cessam-se políticas públicas e programas de desenvolvimento regional.

Na visão do estudo, a redução dos benefícios fiscais funciona como a redução da dispersão da alíquota de ICMS no sentido de diminuir a má alocação de fatores e, assim, aumentar a eficiência econômica e, daí, aumentar a produtividade do trabalho; e, como isso, aumentar o produto potencial. Por fim, a quarta variável seria o preço relativo dos investimentos -a razão entre o deflator da FBCF e o deflator do PIB-, que por suposição teria queda de 5% até 2030. Nos anos 2000, esse indicador caiu bastante, ou seja, o preço dos investimentos caiu em relação ao preço de todos os bens e serviços da economia. Nem por isso assistimos ao espetáculo do crescimento.

São muitas suposições para se encontrar os “resultados expressivos”. Por exemplo, acredita-se no fim absoluto de qualquer tipo de benefício fiscal, mesmo que a Constituição Federal preveja tratamento diferenciado para microempresas e para empresas de pequeno porte (art. 146, IIId), ou que o programa Zona Franca de Manaus esteja cravado na Carta Magna (ADCT, art. 40). Ou será que está se propondo uma reforma constitucional sem uma devida assembleia constituinte? Lembrem-se dos arts. 3º. (sobre os fundamentos da República Federativa do Brasil) e 60º. (sobre o que não se pode reformar com emenda) da Constituição Federal!

Acredita-se, magicamente, com a PEC 45/2019 aprovada, que tudo muda no dia seguinte e, mesmo que pequenos no curto prazo, os efeitos sobre a produtividade total de fatores já serão observados a partir do ano seguinte. Sua implementação e fase de teste pode levar uns quatro anos e ainda tem a longa transição de outros oito anos. Dando tudo certo, e tendo daqui dez anos um “bom IVA” aí sim valeria considerar a possibilidade de robustez do estudo. Até lá, tudo não passa de hipótese. Em todo esse tempo de dez anos, todas as obrigações assessórias serão mantidas; o emaranhado de legislações tributárias será conservado e, assim também toda a litigiosidade e disputa entre contribuintes e administração fiscal. Daí a questão: como isso melhoraria o índice de Business Regulations do Fraser Institute?

Reserva-se para outra oportunidade falar dos sérios problemas de endogeneidade dos exercícios do estudo encomendado pelo CCiF, especialmente quando se tem variáveis que medem “instituições” explicando aumento de produtividade e crescimento de longo prazo. Sabe a história do “dilema de tostines”? Ei-lo. É preciso controlar essa endogeneidade sobre riscos de estimações não robustas. Coisas de econometristas.

Todo o estudo está baseado em efeitos estáticos. Ou seja, toma-se uma decisão e segue até o final com ela. São negligenciadas as mudanças, no tempo, de incentivos ou de preferências dos agentes econômicos, comportamento típico de mudanças de regimes tributários. Veja, por exemplo, possíveis efeitos dinâmicos sobre decisões de investimentos. Conforme a evolução das novas normas e regulamentações tributárias, poder-se-ia assistir ao adiamento de novos investimentos, especialmente aqueles de longo prazo, ou seja, os mais relevantes para a retomada econômica com ganhos de produtividade.

Imagine os riscos de mudanças de orientação de política econômica com novos governos, ao longo da transição? Ou mesmo, dificuldades em conseguir o equilíbrio fiscal e aumento, por vezes, legítimo do apetite do governo em arrecadar mais e, assim, elevar o novo IBS para além do desejável? De novo, aumento de gastos poderia ser financiado com aumento na carga tributária. Isso não seria nenhuma novidade, dada a nossa história, especialmente no contexto de estresse fiscal de curto e médio prazos.

Entre os escassos estudos sobre efeitos das propostas de reforma tributária, vale também a leitura no trabalho de Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti (2019. Reforma tributária e federalismo fiscal. TD 2530, dezembro, IPEA). Os autores procedem diversas simulações, com muito rigor e cuidado e, sob certas hipóteses, apontam que o IBS pode ser menos regressivo que o sistema atual. Entre as hipóteses, tem a crença na manutenção de mesma carga tributária e mesma cesta de bens das famílias mais pobres, ao longo dos próximos anos. Além, de novo, suposição implícita de mesmas preferências e incentivos dos agentes econômicos, no caso, os consumidores, com mudanças no regime tributário.

Não fica clara a suposição dos autores para evasão fiscal em suas simulações para a alíquota possível do IBS. Mesmo assim, os autores não conseguem negar que o Brasil pode ser campeão em alíquota de IVA no planeta. Para eles “a alíquota do IBS deve chegar a níveis próximos de 27% segundo as nossas estimativas, o que colocaria o Brasil entre os países com as maiores alíquotas-padrão de IVA do mundo, ao lado da Hungria, que tributa em 27%, e acima de países como Noruega, Dinamarca e Suécia, com alíquotas de 25%”. De qualquer forma, o IBS é regressivo (veja o gráfico 2, pag. 36, coluna azul claro), mesmo que possa se acreditar que a PEC 45/2019 hipoteticamente reduziria a regressividade, como concluem os autores.

Da mesma forma, não se pode descartar a hipótese de aumento da regressividade da tributação sobre consumo com a PEC 45/2019 em relação ao sistema atual. Com o fim da desoneração da cesta básica, com aumento de preços de bens e serviços provocados por aumento de tributação de diversos setores, e com evolução do consumo das famílias mais pobres rumo a mais serviços em suas cesta de consumo, como se observa com as POF (Pesquisa de Orçamento Familiar), ao longo do tempo, muito provavelmente, a tributação sobre o consumo dos mais pobres tende a crescer em relação ao peso dos tributos sobre a renda de quem ganha mais.

Enfim, precisamos reformar o sistema tributário. Talvez ainda não tenhamos a solução nas mãos, mas não estamos em condições de vivermos de ilusões. O Brasil está com sérios problemas econômicos de médio prazo, entre eles, severa restrição fiscal. Não é momento de aventuras sem estudos qualificados.

Márcio Holland é professor na Escola de Economia de São Paulo da FGV, onde Coordena o Programa de Pós-Graduação em Finanças e Economia e escreve artigos para o Broadcast quinzenalmente às quartas-feiras.

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