Ideia é usar tributo para bancar o aumento da faixa de isenção do IRPF para R$ 5.000
O Ministério da Fazenda estuda a criação de um imposto mínimo para pessoas físicas para garantir uma tributação efetiva da renda dos milionários no Brasil.
O debate sobre o tema está sendo feito de forma reservada na equipe do ministro Fernando Haddad como uma eventual contrapartida para bancar o aumento para R$ 5.000 da faixa de isenção do IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física).
A correção da tabela é uma promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O valor atual de isenção é de dois salários mínimos (R$ 2.824).
O imposto mínimo sobre as pessoas físicas milionárias teria uma alíquota a ser definida entre 12% ou 15% da renda. A sistemática de cobrança seria da seguinte forma: compara-se o valor da aplicação do imposto mínimo sobre a renda total da pessoa, como ganhos de aplicações financeiras, salário, lucros e dividendos etc., com o que ela efetivamente pagou pelo sistema atual. Se o resultado for menor, o contribuinte deverá complementar a diferença no ajuste do IRPF.
Essa seria uma forma alternativa, na prática, de tributar rendas isentas de quem é muito rico no Brasil. Entre elas, por exemplo, lucro e dividendos distribuídos para acionistas de empresas, que não pagam Imposto de Renda. Algumas rendas isentas poderiam, porém, ficar fora da base de cálculo. Esse ponto está sendo avaliado.
Integrantes do governo a par do tema informaram à Folha que uma possibilidade é que o imposto mínimo seja cobrado sobre as pessoas físicas com renda acima de R$ 1 milhão por ano. Hoje, cerca de 250 mil pessoas físicas fazem parte desse grupo. O debate se intensificou ao longo do último mês. Procurado pela reportagem, o Ministério da Fazenda não respondeu.
No Brasil hoje, quanto mais alta a renda da pessoa física, a tendência é que seja menor o imposto que ela paga. É a chamada regressividade do sistema tributário brasileiro. O governo Lula tem como meta tornar o sistema tributário mais progressivo.
Na equipe econômica, há uma preocupação de que o imposto mínimo não atropele a reforma tributária estrutural da renda, que inclui a volta da tributação de lucro e dividendos associada à redução do IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica). Essa é uma das discussões que envolvem o debate sobre o envio ao Congresso da proposta de adoção do imposto mínimo para financiar a correção da tabela.
Elevada pelo presidente Lula neste ano, a faixa de isenção é hoje de R$ 2.824 —a pessoa física com uma remuneração mensal de até esse valor não paga o imposto. Foi a primeira elevação do limite de isenção, após oito anos de congelamento da tabela. A faixa, porém, ainda está distante da prometida por Lula, de R$ 5.000.
O custo de corrigir a faixa de isenção do IRPF para R$ 5.000 poderia chegar a R$ 50 bilhões, se o reajuste da tabela impactasse todas as faixas de renda. A ideia da equipe econômica é reduzir o impacto para uma patamar em torno de R$ 35 bilhões restringindo o alcance da isenção para a pessoa que efetivamente ganha R$ 5.000 e diminuindo a cobrança para quem está próximo dessa faixa.
O imposto mínimo para as pessoas físicas está em linha com a proposta do economista francês Gabriel Zucman, de uma taxação global de super-ricos, os bilionários. A proposta foi levada pelo Brasil ao G-20.
A ideia base do economista prevê um imposto de 2% sobre o patrimônio de cerca de 3.000 pessoas que detêm mais de US$ 1 bilhão ou R$ 5,15 bilhões (mais de cem deles na América Latina), o que geraria uma receita de US$ 250 bilhões.
No início de setembro, o secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Guilherme Mello, antecipou à Folha que a reforma da renda deverá ser dividida em etapas, começando pela pessoa física. Algumas semanas depois, o próprio Haddad afirmou que apresentou a Lula cenários para a proposta da reforma da renda, cabendo ao presidente definir o melhor momento para enviá-la.
O economista Manoel Pires, coordenador do CPFO (Centro de Política Fiscal e Orçamento Público) do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), avalia que a proposta de criação do imposto mínimo para milionários pode viabilizar, na prática, a tributação de lucros dividendos –hoje isentos no Brasil.
Pires critica, no entanto, o eventual uso da arrecadação do imposto para financiar a elevação da faixa de isenção do IRPF para R$ 5.000.
“Tributa-se não qualquer dividendo, mas o dividendo de quem tem uma capacidade econômica muito grande, aí me parece ser muito difícil que se consiga argumentar contra isso, como já se fez em tentativas anteriores”, avalia Pires.
“Acho que deveria ser feito, a proposta parece ser boa. Sou bem mais crítico à isenção de R$ 5.000 que é elevada para qualquer parâmetro internacional”, acrescenta. Ele ressalta que é importante verificar como será o nível de progressividade de todas as mudanças conjuntamente. “O ideal é que seja mais progressivo como um todo.”
Pires lembra que há uma subtributação muito grande no topo da renda dos brasileiros por meio de um sistema muito fragmentado que permite excluir da base tributária do imposto várias rendas, como os lucros e dividendos.
Com a medida em análise no governo, essa renda subtributada seria alcançada. Por exemplo, um empresário com renda de R$ 5 milhões —metade isenta, como lucro e dividendos, e a outra metade de ganho de aplicações financeiras sujeitas a uma alíquota de 15%. Na prática, o imposto pago sobre a renda foi em média de 7,5% ou R$ 375 mil. Pelo modelo em estudo, ele teria que pagar um adicional de R$ 375 mil para chegar ao imposto mínimo, em caso de uma alíquota de 15%.
Na avaliação do economista, a proposta é uma forma de elevar a carga efetiva sobre os mais ricos. “Se houvesse apenas aumento de alíquota, com o atual sistema, não haveria um grande impacto arrecadatório. Mas considerando que a proposta amplia a base de tributação é uma forma de tentar conciliar o atual sistema com a adoção dos pilares de tributação recomendados pela OCDE”, diz Pires, organizador do livro “Progressividade tributária e crescimento econômico”, que reúne a análise de nove autores, além dele, sobre os caminhos para se ampliar a progressividade do sistema tributário brasileiro.
Para ele, elevar a faixa de isenção é uma tarefa muito difícil para o Ministério da Fazenda por tirar muitas pessoas do Imposto de Renda. “Ela reduz bastante o número de contribuintes do imposto de renda no Brasil. Esse trecho da proposta tende a ter um impacto muito regressivo na verdade”, diz.
A reportagem da Folha repercutiu ao longo desta quarta no mercado financeiro e nos escritórios de advocacia com investidores e empresários buscando informações sobre o impacto de eventual aprovação da medida pelo Congresso. Os tributaristas aguardam mais detalhes das medidas em estudo. “Em vez de ser pensar numa reforma tributária estruturante, o governo segue operando na base da colcha de retalhos para cobrir déficit orçamentários”, diz o o tributarista Luiz Bichara.
A proposta em análise pelos técnicos de Hadadd acontece na esteira da criação do Imposto Mínimo Global, previsto em medida provisória editada na semana passada que estabeleceu um adicional à CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) para as multinacionais com a finalidade de garantir a efetividade de uma alíquota mínima de 15%.