O sistema de impostos do país de longa data preocupa os empresários, tanto pela complexidade das regulamentações, como, principalmente, pela alta carga financeira que representa. E se não fosse o bastante, em paralelo, o Estado, por meio da imputação de crime, busca desestimular a prática de sonegação fiscal, recorrendo ao Poder Judiciário como uma forma de garantir que o imposto seja pago, uma vez que o pagamento do tributo encerra a discussão e evita a imposição de pena.
Nesse sentido, no final de 2019, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RHC 163.334/SC, decidiu que o não pagamento do ICMS declarado também tipificaria crime contra a ordem tributária, fixando nova tese sob a qual “o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990″.
Até então, o posicionamento majoritário que vigorava era o de que o referido tributo declarado e não pago não configuraria crime, mas mero inadimplemento fiscal1. Isso porque, somente nas hipóteses de responsabilidade tributária por substituição é que o não pagamento de impostos declarados era considerado crime (como o imposto de renda retido na fonte), por haver o desconto do contribuinte dos valores não repassados ao fisco, configurando apropriação indébita tributária (art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990) ou previdenciária (art. 168-A do Código Penal). Esse novo entendimento, abre um preocupante espaço no futuro para que o não pagamento de outros tributos declarados incidentes na cadeia produtiva também passem a ser criminalizados.
A questão, diante da pandemia que vivenciamos, se torna ainda mais intrincada, pois, a nosso ver, em um breve futuro a ordem jurídica tributária enfrentará um duro choque de interesses. De um lado, o Estado buscando arrecadar recursos para sair da crise econômica e suprir os gastos extraordinários que se fizeram obrigatórios em razão da Covid-19 e, do outro, os empresários, cujas atividades foram drasticamente afetadas pela quarentena, e em razão da mesma crise, foram levados a flexibilizar o cumprimento das obrigações tributárias. De tal modo, a calamidade pública instalada no país levará a apreciação do Poder Judiciário casos concretos, como o do empresário, que com poucos recursos disponíveis, os destina à folha salarial e à quitação das obrigações essenciais para a manutenção do negócio (compra de insumos, custos de energia, aluguéis, etc.), ao invés do pagamento das obrigações tributárias, o que, especialmente após o recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal, poderá ser entendido como crime.
A excepcionalidade da situação, entretanto, exige uma melhor resposta do direito penal. Isso porque, como já visto em hipóteses semelhantes de crises econômicas, se não era possível atuar de outro modo senão contrariando a ordem jurídica deverá haver a exclusão de responsabilidade penal. Tal situação, verificada quando há conflito de interesses igualmente relevantes, é denominada “inexigibilidade de conduta diversa” e a jurisprudência aponta critérios rígidos para sua comprovação, não bastando a mera alegação.
De tal modo, deve ser feita uma demonstração concreta e palatável de que as dificuldades enfrentadas pela sociedade empresarial compunham um quadro excepcional, imprevisível e invencível, impeditivo de que o agente atuasse conforme o ordenamento jurídico. Nesse sentido, para que os riscos sejam mitigados, importante preservar todos os documentos que demonstrem as dificuldades enfrentadas pela empresa durante a crise e que sejam feitos registros minuciosos de cada uma das etapas da decisão, demonstrando as despesas urgentes e imprescindíveis para a sobrevivência da empresa que estão sendo privilegiadas, que no futuro poderão ser uma relevante fonte de prova.
Outro importante critério observado pelos Tribunais ao longo dos anos, na apreciação da excludente de inexigibilidade de conduta diversa, trata-se da impossibilidade da conduta criminosa, a que se pretende ver afastada da responsabilidade penal, ter sido praticada por meio de fraude, por exemplo, quando o contribuinte, ao optar pelo pagamento dos salários dos funcionários e não dos impostos neles incidentes, o faz por meio da falsificação de documentos, mascarando essa sonegação das autoridades fiscais. Na visão dos tribunais, o conflito de deveres é incompatível com a utilização de meios fraudulentos para o não pagamento dos tributos, porque está presente um elemento de maior reprovabilidade da conduta. De todo modo, embora exista um tímido número de julgados admitindo o reconhecimento da tese exculpante de culpabilidade nestes casos, não deve ser descartada pela defesa essa alegação, em especial em situações nas quais não pairam dúvidas sobre a difícil situação financeira enfrentada à época dos fatos.
Por fim, a tese da inexigibilidade de conduta diversa não impede a instauração de investigações policiais, tampouco, o curso de processos penais, já que é prerrogativa do Poder Judiciário afastar a responsabilidade penal após a análise das provas apresentadas. Ou seja, somente após a demonstração de que o empresário deixou de realizar o recolhimento dos impostos devidos motivado pela crise econômica e visando salvar a empresa é que poderá haver a exclusão do crime.
Por
Karin Toscano Mielenhausen
Débora Motta Cardoso