Carta aberta da Fenep sobre o tema ‘Homeschooling’

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Alerta: a Federação Nacional das Escolas Particulares, faz um alerta à sociedade brasileira

Homeschooling

O acesso à educação é a abertura de um novo horizonte ao indivíduo, pois dá a ele a chave para autoconstrução e de seu reconhecimento como um ser capaz de ter opções. O direito à educação é a chance que o cidadão tem de crescer, de trilhar caminhos diferentes. Para reforçar o caráter social e político da educação, vale citar palavras de Theodoro H. Marshall ao dizer que “a educação é um pré-requisito necessário da liberdade civil”, sendo indispensável ao indivíduo ler e escrever.

Não restam dúvidas a respeito do papel insubstituível e essencial da educação na formação do indivíduo. Estudos e pronunciamentos da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e da Associação Brasileira de Pediatria têm focado a importância da Educação, pois não adianta cuidar da saúde biológica e descuidar da saúde mental; os danos são irreparáveis. Para entenderemos melhor o processo educacional é fundamental que tenhamos em mente a proposta da UNESCO, que definiu Os Quatro Pilares da Educação no Século XXI, apresentados através do estudo coordenado por Jaques Delors intitulado Educação: Um Tesouro a Descobrir, quais sejam: aprender a conhecer, fazer, conviver e ser.

Aprender a conhecer: essa aprendizagem se refere à aquisição dos “instrumentos do conhecimento”, desenvolvendo nos alunos o raciocínio lógico, a capacidade de compreensão, o pensamento dedutivo e intuitivo e a memória. O importante é não apenas despertar nos estudantes esses instrumentos, como motivá-los a desenvolver sua vontade de aprender e querer saber mais e melhor.

Aprender a fazer: essa aprendizagem confere ao aluno uma formação em que aplicará na prática seus conhecimentos teóricos. É essencial que cada indivíduo saiba se comunicar através de diferentes linguagens, assim como interpretar e selecionar quais informações são essenciais e quais podem ajudar a refazer opiniões e serem aplicadas na maneira de se viver e de redescobrir o tempo e o mundo.

Aprender a conviver: esse domínio da aprendizagem atua no campo das atitudes e dos valores e envolve uma consciência e ações contra o preconceito e as rivalidades diárias que se apresentam no desafio de viver.

Aprender a ser: esta aprendizagem depende das outras três, e dessa forma a educação deve propor como uma de suas finalidades essenciais o desenvolvimento do indivíduo, espírito e corpo, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal e espiritualidade.

Temos acima os quatro pilares que sustentam a formação não só educacional, mas também sócio emocional de nossas crianças. Levando em conta que o aprender a ser é uma consequência dos outros três pilares, podemos dizer que um tripé sustenta a formação adequada de nossas crianças. Faltando qualquer um deles, é certo que a construção do futuro cidadão estará comprometida. Não como há ficar em pé uma estrutura projetada para ter quatro pilares, quando somente dois deles são cimentados. O Homeschooling é uma ideia que nasce morta por sua limitação de não oferecer a essencial convivência no aprender. Se não atendido o pilar aprender a conviver, pois é isto que o estudar em casa tira de nossas crianças, prejudicamos automaticamente o aprender a ser e com isto a formação fica incompleta, pois dos quatro pilares apontados pela UNESCO ficaremos apenas com dois, logo a formação é incompleta e o direito a educação negado.

É preciso analisar a importância da entrada da criança no mundo escolar. A ampliação das relações sociais proporcionada pelo ingresso das crianças na escola contribui favoravelmente para o desenvolvimento da autonomia, da independência e impulsiona importantes avanços no campo das relações interpessoais e da socialização dos estudantes.

A família, primeiro ambiente social que a criança convive, apresenta uma limitação em termos de possibilidades de desenvolvimento sociocognitivo e socioemocional por estar inserida em uma dimensão privada. As relações familiares são reguladas essencialmente pelo afeto e a criança ocupa uma posição central em termos de atenção. As regras de convivência podem ser muito mais flexibilizadas dentro da família.

Já a entrada na escola, marca a passagem do ambiente privado para a esfera pública, como ressalta La Taille (1995). Para o autor, o papel da escola é complementar ao da família, porém de forma ampliada na medida em que está inserida na dimensão pública, preparando os estudantes para o convívio social. Nessa perspectiva, a escola é um espaço onde o exercício da cidadania é possível, mas repita-se que escola e família se complementam e se não houver a coexistência destes dois ambientes a formação será incompleta.

Alguns autores da área da psicologia e da educação, como Dias e Vasconcellos (1999), chamam a atenção para o fato de que, não são os objetos de conhecimento, mas a convivência com os pares proporcionada pela escola o fator essencial da influência da escola sobre o desenvolvimento das crianças. Como citamos acima a falta do aprender a conviver. Uma pesquisa realizada por Pereira, Marturano, Gardinal-Pizato e Fontaine (2011) verificou que crianças que frequentam até um ano de educação infantil – primeira etapa da educação básica – se mostram mais responsáveis, cooperativas e assertivas que aquelas que não tiveram acesso a essa etapa do ensino. Além do impacto no desempenho cognitivo e na competência social das crianças e jovens, a escolarização possui um papel fundamental na formação ética e no desenvolvimento moral dos estudantes (DIAS & VASCONCELLOS, 1999).

No ponto de vista do desenvolvimento moral, Piaget (1932/1994) chama a atenção para a importância das relações e das trocas que a criança experimenta com seus pares para o desenvolvimento da sua autonomia. Na medida em que se estabelecem relações simétricas, isto é, entre iguais, desenvolve-se outra forma de relação social: a cooperação. Esta difere-se das relações que se estabelecem com os adultos, pais ou mesmo irmãos ou primos mais velhos. Por meio das relações cooperativas crianças e jovens podem desenvolver o respeito mútuo e a capacidade de se colocar no lugar do outro. As escolas, por se tratarem de espaços ricos em relações interpessoais, são instituições importantes para o desenvolvimento moral e socioemocional dos estudantes.

A convivência com os pares, amplamente proporcionada pela escola, contribui não apenas no desenvolvimento das relações sociais, da empatia, cooperação, como também é fundamental no desenvolvimento da autonomia e do processo de independização. Ao ingressar na escola e participar de um ambiente social mais amplo, a criança necessita compartilhar a atenção com outras crianças e exercitar a espera, como observam Eizerik e Bassols (2013), além de desenvolver a habilidade de executar tarefas de forma ordenada e seguir regras de convivência mais amplas, restringindo os próprios desejos. A possibilidade de convivência com os pares amplia o reconhecimento do outro, as relações e desenvolve valores como a cooperação, negociação, empatia e os vínculos de amizade, de forma diferente do que o convívio estritamente familiar.

Na transição para o período da adolescência, os grupos de iguais tornam-se cada vez mais importantes e essenciais para a consolidação da identidade. Os grupos proporcionam os movimentos identificatórios de pertencimento e também trazem maior segurança ao movimento de afastamento da família necessário para o crescimento (EIZIRICK & BASSOLS, 2013; ESTANISLAU E BRESSAN, 2014). Ainda, a construção de vínculos de amizade que vem se ampliando desde o ingresso no período pré-escolar torna-se fundamental nessa fase, com significativas contribuições na formação do autoconceito e do ajustamento social dos jovens (CARVALHO, FERNANDES, CÂMARA, GONÇALVES, ROSÁRIO & FREITAS, 2017; FREITAS, SANTOS, RIBEIRO, PIMENTA, & RUBIN, 2018).

É falso o argumento que a crianças podem conviver em outros espaços. O conviver está ligado ao aprender, não somente ao estar junto em ambientes diferentes da escola. Também são facilmente refutáveis os outros argumentos de quem defende o Homeschooling. A falta de qualidade em nossas escolas, principalmente na rede pública não pode servir como argumento. Ignorar a existência da escola ao invés de tentar melhorá-la é negar um futuro a nossas crianças. O centro do processo de ensino e aprendizagem é o aluno e a escola deve estar voltada para sua formação e esta é uma boa escola. Preocupações morais e religiosas não devem ser um empecilho para a criança frequentar a escola, pois os valores nossas crianças trazem de casa, afinal de contas a escola ensina, mas é a família quem educa. Por isto mais uma vez insistimos na parceria ente família e escola, cada uma em seu espaço, para uma formação adequada de nossas crianças.

Por fim cabe salientar que recentemente a UNICEF publicou estudo que, em virtude do fechamento das escolas, em função da pandemia de COVID19, a segurança das crianças e dos adolescentes está sendo colocada em risco, com consequências potencialmente de difícil reparação, pois a escola é uma rede de apoio quando se refere a violência doméstica, pedofilia, prevenção de gravidez infantil e uso de drogas. Segundo o estudo, cerca de 30% das crianças em isolamento desenvolveram critérios clínicos para diagnóstico de transtorno do Estresse Pós-Traumático; houve aumento de 50% nas denúncias por violência doméstica; e, entre março e abril de 2020, a redução de 18% de denúncias de abuso contra crianças no Brasil.

Desta forma a escola é também um local de proteção de nossas crianças, um porto seguro onde podem se desenvolver. Estudar em casa dá uma visão míope do mundo para a criança. Na escola, a criança aprende a conviver e está entre seus iguais. Aprende que existem crianças diferentes dela, com outros valores, com outra formação, que pensam diferente e isto ajuda em seu crescimento enquanto indivíduo. Na escola, as crianças aprendem que existe a diversidade, que o mundo não se resume a sua família. Tirar a escola da criança é privá-la de uma formação completa.

Olhado para outros países e sabemos que em alguns deles o Homeschooling é permitido é sábia a lição que recebemos da Alemanha, que em 2006, através do Tribunal Constitucional Federal proibiu o Homeschooling. Decidiu a corte daquele país que “é de justo interesse público contrariar a criação de “sociedades paralelas” com motivações religiosas ou ideológicas e promover a integração de minorias”. Já no Canada onde é permitido o Homeschooling é importante dizer que pesquisa realizada naquele país, mesmo que em alguns casos a motivação religiosa esteja presente nesta escolha, os pais optam pelo ensino em casa pela questão de custos (famílias muito numerosas) ou por terem filhos com deficiência. Desta forma se pudessem pagar pela escola e houvesse uma escola inclusiva naquele país, o estudar em casa, seria desnecessário.

É importante lembrar que assim como na Alemanha o Homeschooling não é permitido no Brasil, por não ser considerada uma modalidade de ensino enquadrada naquelas já autorizadas pela ordem jurídica vigente. Somente com alteração da legislação federal seria possível a implantação de um sistema de Homeschooling, sendo essa a decisão sacramentada pelo Supremo Tribunal Federal em 12 de setembro de 2018, no Recurso Extraordinário 888.815 RS. Nesse julgamento consignou-se expressamente o norte para uma eventual criação de um sistema de Homeschooling, o qual necessariamente passaria pela “sua criação por meio de lei federal, editada pelo Congresso Nacional, na modalidade ‘utilitarista’ ou ‘por conveniência circunstâncial’.

Assim, igualmente importante o destaque de que falece aos legislativos estaduais e municipais competência para editar leis instituindo sistemas de Homeschooling próprios, posto que primeiramente seria necessária a estipulação nacional da norma-quadro, por ato e vontade do Congresso Nacional, nos termos da Constituição Federal de 1988 e já devida e expressamente interpretada no julgamento já referido. Respeitamos, mesmo que não concordemos, com a posição daquelas pessoas que são a favor do Homeschooling, mas entendemos que o nosso país, uma democracia jovem, não está pronto para uma experiência deste tipo.

Na improvável hipótese de que seja permitido este tipo de prática, regras muito rígidas de controle – avaliações periódicas por órgão certificadores e documentação da aprendizagem realizada em casa – precisarão ser aplicadas, pois estamos tratando do futuro do nosso país. Nessa medida, é importante que se recorde que o STF não só fixou balisas em relação ao ‘quem` pode criar o sistema de homeschooling, como igualmente afirmou que tipos de homoschooling não poderiam ser aceitos. Assim, já afirmou que são “inconstitucionais, portanto, as espécies de unschooling radical (desescolarização radical), unschooling moderado (desescoralização moderada) e homeschooling puro, em qualquer de suas variações”. Sua criação, portanto, se assim for a decisão do Congresso Nacional, já nasceria com a obrigação constitucional de cumprir a obrigatoriedade do ensino de 4 a 17 anos, de respeitar o dever solidário da Família/Estado, de observar o núcleo básico de matérias acadêmicas, bem como seria necessariamente submetido à supervisão, avaliação e fiscalização pelo Poder Público.

A decisão de 2018 proferida pelo STF deixou claras não só estas balizas como igualmente assinalou a importância da observância das “demais previsões impostas diretamente pelo texto constitucional, inclusive no tocante às finalidades e objetivos do ensino; em especial, evitar a evasão escolar e garantir a socialização do indivíduo, por meio de ampla convivência familiar e comunitária (CF, art. 227)”. Certamente, temos outros temas mais relevantes para tratar no campo educacional em nosso país do que o Homeschooling e com certeza pior que uma escola com deficiências, mas que podem e precisam ser corrigidas, é não levar nossas crianças para a escola. Por todas as razões acima expostas a FENEP – Federação Nacional das Escolas Particulares entende que o espaço escolar público ou privado é essencial para o desenvolvimento sócio emocional de nossas crianças e por isto se posiciona contrariamente ao Homeschooling.

Ademar Batista Pereira
Presidente FENEP

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