O projeto inteiro do IR é inoportuno e tecnicamente equivocado, diz ex-secretário da Receita

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'Tributação de dividendos vai tirar uma boa parte da racionalidade da escolha do empresário', aponta Cintra. Foto: José Cruz/Agência Brasil / Estadão

Segundo Marcos Cintra, tributação de lucros e dividendos com alíquota de 20% sugerida pelo governo pode gerar distorções no sistema e afugentar os investidores

Fonte: Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo | 28 de junho de 2021 | 17h45

Primeiro secretário da Receita do governo Bolsonaro, o economista Marcos Cintra, é uma voz ácida contra o projeto de lei que altera o Imposto de Renda. Segundo ele, a tributação de lucros e dividendos (remuneração que os acionistas recebem pelo capital investido na empresa) com alíquota de 20%, vai promover aumento brutal da carga tributária, distorções no sistema e afugentar os investidores. Cintra diz que sempre se opôs ao fim da isenção que existe hoje quando esteve na equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes.

‘Tributação de dividendos vai tirar uma boa parte da racionalidade da escolha do empresário’, aponta Cintra. Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Qual a sua avaliação da proposta de reforma?

A motivação principal foi a promessa de campanha do presidente Bolsonaro de mexer na pessoa física com a correção da tabela. E, a partir daí, se aproveitou o momento de fazer uma faxina, principalmente, na pessoa jurídica e no mercado de capitais. O segundo aspecto, que não é mais imposição política do presidente, mas uma visão que o Ministério da Economia tem de tributar os dividendos. Essa é uma visão equivocada com o argumento de que todos os países do mundo cobram e o Brasil também deveria cobrar. Ignorando o fato de que a isenção foi um aperfeiçoamento que o Brasil corajosamente implantou há 25 anos.

Por que a volta da tributação é equivocada?

Vai ter dois impactos negativos. Primeiro, vai passar a ser uma tributação a introduzir uma distorção na escolha do empresário, entre reinvestir ou distribuir. Isso é uma decisão que para aumentar a eficiência de uma economia tem que deixar o próprio empresário decidir o que ele quer fazer. É uma não neutralidade. Eu fico estranhando quando o secretário da Receita (José Tostes) diz que uma das coisas é buscar maior neutralidade do sistema. Agora, a tributação de dividendos, com essa cacetada de 20%, vai tirar uma boa parte da racionalidade da escolha do empresário.

Qual é o segundo ponto?

Uma das coisas saudáveis que a isenção trouxe ao Brasil é que sempre tivemos uma bolsa de valores que é quase um cassino, onde as pessoas compram e vão ganhar ou perder, vendendo o ativo. O que a não tributação de dividendos fez foi aproximar o Brasil do que existe em outros países, onde as pessoas compram ações e vivem dos dividendos que são pagos. Isso é saudável e dá estabilidade. Com a taxação, se desestimula esse mercado.

Por que não tributar os dividendos, se o Brasil tributa aluguel, salários e tantas outras coisas? Na campanha eleitoral, a volta dessa tributação foi prometida também. O sr esteve no início do governo Bolsonaro e sabe disso.

Isso. Eu sempre me opus quando eu estive lá. Eu tentei evitar que isso avançasse. Existe uma tributação de pessoa jurídica e existe a pessoa física. A tributação da pessoa física se dá no momento quando o dinheiro entra na sua conta. A da pessoa jurídica se dá em dois momentos, primeiro quando o lucro é gerado e segundo quando ele é distribuído. Então, a tributação do lucro será a soma de duas alíquotas, na geração do imposto e na distribuição. O que a tributação no Brasil há 25 anos foi acabar com essa distorção e isso teve impacto muitos positivos, como o fortalecimento em bolsa. Nós vamos ter subitamente uma alteração muito importante na competitividade da economia brasileira como mecanismo capaz de atrair investimento estrangeiro.

Mas outros países não têm essa isenção e atraem investimento?

É verdade, mas eles não têm um monte de coisa que temos aqui. O fato é que quando uma empresa decide investir no Brasil ela olha o conjunto, risco, insegurança jurídica. Mas olha com um ponto positivo o fato de que não tributa dividendos. Isso é muito sério e torna essa medida inoportuna no momento em que se pretende a retomada da economia e da superação da pandemia.

Todos já sabiam que isso iria acontecer. O ministro Paulo Guedes sempre falou da mudança.

Isso não muda a minha crítica. O aumento de tributação será 43%. Isso é maior do que todos os países da comunidade europeia e da comunidade internacional. As pessoas querem aumentar a progressividade (penalizar menos os mais pobres). Isso é outra coisa que está sendo chamada o tempo inteiro na divulgação do projeto: ‘agora queremos. É rico que recebe dividendo”. É uma besteira. É gente de classe média, tanto que mantiveram a isenção de R$ 20 mil. Se quer progressividade, por que não tributa o beneficiário na tabela progressiva do (IRPF)? Isso é correto.

Qual o impacto na arrecadação com a tributação de lucros e dividendos?

Vai ter uma elevação brutal da carga tributária. Não em 2022, mas em 2023, 2024. Aí, o governo vai chegar e dizer que esse é um aumento estrutural. Viu que eles já começaram com esse discurso na apresentação do projeto? Em 2022, eles querem ganhar R$ 18,5 bilhões e em 2023, R$ 54 bilhões, passando para R$ 58 bilhões em 2024. Uma das razões para esse salto é que eles acham que todo mundo vai antecipar a distribuição de dividendos em 2021. No Brasil, se distribui por ano R$ 450 bilhões de dividendos. É muito dinheiro.

O que seria um projeto bom?

Eu não tenho condições de refazer o projeto que eu gostaria. Mas eu acho que tributação de dividendos não deveria ser mexido.

O sr. acha que o ministro Paulo Guedes decepcionou os setores empresariais com uma taxação mais alta?

Ninguém que uma taxação tão alta. Eu não entendo por que acabaram com a isenção do fundo de investimento imobiliário e não acabaram com LCA e LCI. Por quê? Tudo é política.

O que vai acontecer com o projeto?

Duas coisas. Essa alíquota de 20% é o bode na sala. Ela vai ser reduzida, provavelmente para 10%, depois para 15% e em três anos chega lá. Essa reforma provavelmente foi muito mal recebida. Mas aqueles que serão afetados vão resistir. O limite de isenção de R$ 20 mil foi colocado também como mais um bode. Eu acho que o governo sabe que haverá uma pressão para que se aumente esse limite. Se eles querem pegar só o ricaço, vai ter uma pressão para aumentar para R$ 30 mil, R$ 40 mil ou começar com R$ 50 mil no primeiro ano para atenuar.

Quais serão outros pontos para debate no projeto?

O governo espera arrecadar uma fortuna com a atualização de imóveis. O governo não falou, mas lembra que há dois anos o presidente falou que tinha um projeto que daria muito mais do que a reforma da Previdência. Era esse projeto. Quando eles falam que o déficit (nas contas públicas) vai zerar é fazendo essas coisas. Isso se chama antecipação de receitas e é inconstitucional. Esse projeto inteiro é inoportuno e tecnicamente equivocado. Se se procura justiça tributária, que se faça tecnicamente de maneira adequada. O único ponto que eu vi positivo é a correção do IRPF, que está há muitos anos congelada. É uma injustiça e deveria haver uma regra

O outro lado

Reforma do IR propõe distribuir renda com mais ‘justiça’, diz assessor de Guedes

Segundo Isaías Coelho, mudanças propostas pelo governo estão em linha com o que é feito no resto do mundo

O assessor especial do Ministério da Economia, Isaías Coelho, diz que o projeto de reformulação do Imposto de Renda entregue pelo governo ao Congresso na semana passada redistribui o peso da carga tributária com mais “justiça” e em linha com o que é praticado no resto do mundo. “O impacto geral certamente é pró-distribuição da renda. É progressivo”, afirma. Um sistema tributário mais progressivo significa que quanto mais a pessoa ganha, maior deve ser o peso do imposto pago.

Para ele, o projeto permite reduzir a carga das empresas e, ao mesmo tempo, dar uma folga maior no Imposto de Renda do assalariado. “É um conjunto de medidas que fazem sentido juntas”, afirma. O assessor do ministro da Economia, Paulo Guedes, admite que a equipe gostaria que a redução de cinco pontos porcentuais na alíquota do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), fosse maior, mas as restrições fiscais impediram um movimento mais forte.

Coelho lembra que a volta da cobrança de lucros e dividendos é pedida há muito tempo e afirma que a taxação pode aumentar investimentos no País, na contramão do que afirmam os críticos. “Há 25 anos, nós não tributamos dividendos. Para o acionista é um paraíso. Mas do ponto de vista social não é certo”, diz.

O setor produtivo diz que vai pagar mais com o projeto, que a redução do IRPJ veio menor do que esperado e que a taxação de lucro de dividendos em 20% está muito alta. Qual a sua avaliação sobre essas críticas?

Nós gostaríamos que a redução na alíquota do IRPJ fosse maior. Uma queda de 5 pontos porcentuais tem um impacto já bastante grande na arrecadação. É o que foi possível fazer. O ministro (Paulo Guedes) é favorável a uma tributação menor da empresa e certamente essa redução, embora significativa, não é vista como levando a tributação ao ponto desejável. Claro que há sempre as expectativas de que haja uma redução mais drástica, mas há restrições nas finanças públicas que impedem que se avance muito rapidamente nessa direção.

Não é uma opção de prioridades já que o governo não cortou tanto como esperado as isenções, mesmo das pessoas físicas?

As isenções estão sendo tratadas em separado. Há uma PEC (emergencial, já aprovada) que determina uma reavaliação nas renúncias e isso está em processo. Esse projeto não foi direcionado para as isenções. Certamente, eliminando as isenções, haverá mais espaço para fazer outras mudanças desejáveis na legislação do IR. É algo que ainda vai ser discutido. O fato é que esse projeto, até pelo timing, procurou avançar rápido na solução desses outros problemas.

Mas a reação dos grandes empresários foi grande?

Ninguém gosta de pagar imposto. Quem pode estar infeliz é quem estava totalmente isento. São as pessoas que recebem dividendos e terão que pagar 20%. Certamente é uma mudança que não é para deixar o acionista alegre. Tem um aspecto de justiça e tem aspecto de arrecadação. O projeto permite desonerar a empresa e permite dar uma folga maior do Imposto de Renda do assalariado. É um conjunto de medidas que fazem sentido juntas.

É uma reforma que traz mais distribuição de renda, como muitos cobravam?

Sim, ela tem vários aspectos que serão mais bem vistos analisando no seu conjunto e também nos seus componentes. No mercado de capitais dá um certo tratamento uniforme que facilita e até diminui a carga para alguns segmentos, mas também cobra de outros que não estavam pagando. É o caso dos fundos imobiliários. Já outros (aplicações) pagavam até 22,5%. Quando se baixa desses 22,5% para 15%, portanto, tornando igual o investimento mais uniforme. E também com uma alíquota moderada. É algo que é desejável.

Mas as empresas dizem que a carga sobe para 49% com a tributação do lucro e dividendos?

Não é correto somar o imposto sobre dividendos com o lucro da empresa, porque são coisas distintas. Estão falando em 49%, mas é um simplismo. Se for para somar, daria 43%. Imagina um lucro de R$ 1 milhão, a empresa paga R$ 290 mil de impostos. Sobram R$ 710 mil. Vamos supor que a empresa distribui todo esse lucro, serão R$ 140 mil de imposto. Esse imposto que é 14% é que adicionaria aos 29% para chegar a 43%.

Por que não pode somar a carga?

Na verdade, são pessoas diferentes (empresa e pessoa física). O acionista pode ser pessoa física, pode ser até mesmo outra empresa. O lucro não precisa ser distribuído logo. A empresa pode pagar só os 29% e deixar o dinheiro aplicado na empresa. Ele pode reter. Quem paga é o acionista. No mundo inteiro, é visto como algo distinto. É o que todos os países fazem. Eles tributam o dividendo e muitas vezes tributam de forma ainda mais pesada.

Os críticos acham que a tributação com 20% do lucro e dividendos vai afastar investimento, atingir remessas para o exterior e a distribuição de empresa para empresa.

Eles olham muito para a tributação da empresa. Se dermos uma busca da tributação internacional das empresas, investimento, vai haver muita discussão sobre qual país tributa mais ou menos. Mas tributa a empresa. Não vai achar nada lá ‘o dividendo é tributado mais’. Para o investidor, o que interessa é a situação da empresa. O fato é que se está reduzindo a alíquota do IRPJ. Na regra atual, uma empresa com lucro de R$ 1 milhão tem que tirar R$ 340 mil para pagar imposto. Sobram R$ 660 mil para investir ou distribuir aos acionistas. Agora, com o projeto, pagará R$ 290 mil, sobrando R$ R$ 710 mil. A capacidade de investimento dela será maior. Sobrará mais dinheiro no caixa. Ela pode distribuir um pedacinho e deixar o resto para distribuir mais adiante. O fato é que tem um efeito positivo em termos de caixa.

E o impacto dessa mudança na tributação no resto do mundo?

Hoje saiu um estudo do economista do banco da Itália que mostra que a empresa faz menos deslocamento de lucro (transferência de lucro de um país para outro para pagar menos) à medida que se reduz o imposto sobre a empresa. É claro que no Brasil, com uma taxa de 34%, das mais altas do mundo, certamente as empresas estavam transferindo lucro daqui de alguma maneira. O incentivo para transferir lucro diminui. A taxação de 29% do IRPJ não é ideal, mas é importante.

Mas a diminuição de 34% do IRPJ para 29% se dará em dois anos. Por quê?

Se espera que com a tributação dos dividendos haja certo represamento da distribuição para economizar imposto. A empresa não distribui tanto como distribuiria se fosse isento. O acionista em muitos casos vai preferir deixar o dinheiro na firma para não pagar o imposto. Nesse caso, a arrecadação, pelo menos no primeiro ano, vai ser menor, sobre dividendos, portanto, o alívio que se dá à empresa é parcial. Essas duas coisas têm que estar balanceadas para não dar um impacto fiscal adverso.

Estudo recente dos economistas Charles Boissel e Adrien Matray, da Universidade de Princeton, baseado em caso semelhante de elevação da tributação de dividendos na França, mostra que houve aumento de retenção de lucros e também de investimentos financiados pela maior poupança das empresas. Pode acontecer o mesmo no Brasil?

Há 25 anos que nós não tributamos dividendos. E todo mundo está acostumado com isso. Para o acionista é um paraíso isso daí. Mas do ponto de vista social não é certo. Outros rendimentos são tributados. Aluguéis pagam imposto, os salários pagam e outras coisas também. Deixar os dividendos com uma coisa privilegiada não é muito bom. A empresa terá mais recursos no caixa para investir. E fica a opção dela distribuir ou não. Como a lei vai entrar em vigor em janeiro, imagino que haverá muita distribuição de dividendos esse ano. Isso já está tudo considerado.

As empresas de lucro presumido estão reclamando demais das mudanças de que a carga vai aumentar. Por quê?

Se você combina com seus colegas de criar uma sociedade comercial, uma empresa praticamente de trabalho, como por exemplo um escritório de advocacia, o custo é muito pequeno. Na verdade, é uma sociedade de profissionais. Quando se estima o lucro (para a declaração pelo regime de lucro presumido) não pega realmente o lucro, e a distribuição que vai ser feita é bem superior àquela que se pagou o imposto da empresa. É uma dupla não tributação. As outras pessoas jurídicas pagam hoje os 34% e não pagam a distribuição do lucro. Mas as de lucro presumido não pagam os 34% do IRPJ e também não pagam dividendos. É uma situação muito injusta. Elas pagam muito menos imposto. Nesse caso, o impacto é alto e é certo. Tem que cobrar mesmo. Todos têm que pagar e elas não estavam pagando.

A volta da tributação de lucros e dividendos foi um tema muito discutido na campanha de 2018 e nos últimos anos. Por que a surpresa?

Todo mundo estava pedindo. Se olhar matérias jornalísticas dos últimos cinco anos, não dá outra coisa. Se o olhar no Congresso, o número de projetos que tem lá tributando dividendos, é quase uma unanimidade. Chiar é compreensível. Chegou a hora. Uma hora chegaria.

Como o senhor resume a proposta?

Essa proposta não é de aumento de tributos. Ela faz um rebalanceamento e redistribui o peso tributário de uma forma mais adequada e mais em linha com a prática do resto do mundo. Com mais justiça, sem dúvida nenhuma. O impacto distributivo dessa medida é muito forte. Na tabela progressiva do IRPF, o alívio é maior quanto menor a classe de renda. O impacto geral certamente é pró-distribuição de renda. É progressivo. Isso é um clamor popular que existe de tornar o sistema mais progressivo.

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