Observem o seguinte. Menos de 4% dos alunos do ensino médio de São Paulo, em 2021, terminaram o ano com conhecimento considerado adequado em matemática. O aluno sai do 3º ano do ensino médio com o conhecimento mínimo desejável para um estudante do 7º ano do fundamental. O secretário de Educação de São Paulo, Rossieli Soares, que além de bom gestor é um tipo sincero, foi direto ao ponto: “O que já era ruim ficou pior”, definindo nossa educação pública como “uma com os piores resultados” do mundo.
Alguém poderia pensar que esses resultados vieram apenas em decorrência da pandemia. Ledo engano. O desastre da pandemia é basicamente a continuação do desastre de nossa educação estatal. Dados do Ideb de 2019 mostram que apenas 5,2% de nossos estudantes das escolas estatais no 3º ano do ensino médio tiveram um aprendizado adequado em matemática, contra 41,3% nas escolas da rede privada.
Muita gente não gosta de ler sobre essas coisas. Outros já cansaram. “Nossa educação pública é assim e não vai mudar”, escutei tempos atrás, de um gestor público um tanto abatido. Ele havia dirigido uma Secretaria de Educação e desistiu. Não conseguiu mudar as “engrenagens da máquina pública”, me disse. Não tinha poder sobre as escolas, os indicadores de desempenho eram apenas para constar, professores não eram avaliados e os sindicatos reagiam a qualquer tentativa de mudança.
Há quem insista na tese de que os alunos das redes públicas não aprendem porque são pobres. Escutei variações elegantes dessa ideia em dezenas de debates, nos últimos anos. O problema não viria das aulas não dadas, da burocracia, da falta de dinamismo das escolas. Nada disso. A culpa seria dos próprios alunos, sem apoio em casa e pais sem a devida formação. Essa tese sempre me pareceu a mais terrível. A tese conveniente, que nos redime do erro de nossas próprias escolhas. De um Estado que deveria encarar e superar as limitações da pobreza, e não as usar como desculpa para seu próprio fracasso.
Durante a pandemia, o sistema falhou mais uma vez. Os dados da PNAD Contínua de 2021 mostram que o número de estudantes de 6 e 7 anos que não sabem ler e escrever aumentou 66,3% de 2019 a 2021. Milhões de estudantes brasileiros simplesmente não tiveram aulas. Outros tantos tiveram algo que apenas remotamente se pode chamar de ensino a distância. O que o país fez em relação a isso? A oposição culpou o governo federal e este os estados e municípios. E quem manda nos dois lados se salvou, como sempre, nas boas escolas privadas.
Conversei com dezenas de gestores para saber o que aconteceu. As histórias giram todas em torno da lentidão para comprar tablets e acesso às redes; a dificuldade da escola funcionar de on-line; treinar os professores no modelo digital; a resistência dos sindicatos. Não se trata de nenhum problema específico, nem deste ou daquele governo. Há simplesmente um sistema destituído de senso de urgência, no qual o usuário — famílias e alunos — não tem nenhum poder de influência. Poder de exigir que as coisas funcionem ou mudar de escola. De dizer “não” a um sistema que não responde. E do qual não tem como escapar.
Recursos não parecem ser o problema. Leio que na virada do ano o governo de São Paulo concedeu 1,6 bilhão de reais de “Abono-Fundeb” aos professores estaduais. No estado do Amazonas, o vale foi de 480 milhões de reais. Leio que prefeituras como a de Parnarama, no interior do Maranhão, pagaram 28000 reais a cada servidor. Em Castelo, no interior do Piauí, o “bônus” foi de 18600 reais. Observar esses “abonos” nos dá um bom retrato de nosso ensino estatal. Muita retórica “pela educação”, foco real na demanda corporativa e virtualmente nenhum no aprendizado dos alunos.
Retrato da educação pública que construímos. Nesse caso, resultado de uma pequena frase colocada na Constituição, em 2020, quando da votação do “novo Fundeb”. Uma frase mandando passar de 60% para 70% o gasto mínimo do Fundo com servidores públicos. Alguma razão objetiva para isso? Algum estudo de prioridades? Nada disso. Apenas uma padronização, posta na Constituição, valendo para todos os municípios e estados brasileiros, independentemente de seu perfil e necessidades, numa época de rápida mutação demográfica. O porquê disso? Política e capacidade de pressão, no Congresso, e o silêncio, da sociedade.
Enquanto isso, leio que Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova York, lançou um amplo programa para incentivar a expansão das escolas charter, nos Estados Unidos. São escolas independentes, geridas por organizações especializadas, sob contratos de gestão com o governo, que passa a focar na regulação do sistema e na qualidade do resultado alcançado. Serão 750 milhões de dólares para apoiar a criação de escolas, premiar iniciativas e avaliar resultados. “A educação pública americana está quebrada”, diz Bloomberg. É preciso “um modelo baseado em evidências, centrado nos alunos, capaz de premiar desempenho e responsabilizar as escolas pelos resultados obtidos”.
Bloomberg não fala da boca para fora. Quando foi prefeito de Nova York, implantou uma ampla rede de escolas charter. Pesquisa da Universidade Stanford mostrou que seus alunos “ganham 63 dias de aprendizado a mais, em matemática, em relação aos alunos das redes tradicionais”. É um indicativo. Nenhum modelo é uma solução mágica. O que aparece aí é uma alternativa relevante, em linha com exemplos bem-sucedidos de parcerias público-privadas em curso no Brasil. O que definitivamente não adianta é bancarmos o avestruz, fazendo de conta que estamos para sempre condenados ao exclusivo modelo de monopólio estatal, cujos resultados já sabemos de cor.
Escolas estatais, no Brasil, atendem a 84% dos estudantes, com resultados bem abaixo da média americana, como nos mostra o PISA, a cada três anos. Ainda assim, nos recusamos a pensar em alternativas. E elas estão aí. As inovações da reforma do Estado vão produzindo uma revolução, país afora. Parques ambientais e aeroportos vão sendo concedidos à gestão privada. Hospitais são gerenciados via PPPs, como nos mostra a Bahia, e instituições de excelência, como Einstein e Sírio-Libanês, gerenciam hospitais públicos, em São Paulo. Recentemente aprovamos o novo marco do saneamento básico, e assistimos a uma onda de investimentos privados no setor.
Na educação, estacionamos. Nos especializamos em diagnósticos sobre quanto nossos alunos não aprendem, fazemos testes sem consequência e apostamos sempre nas velhas soluções. O “é assim porque sempre foi”, na frase genial de Faoro sobre nosso tradicionalismo político, parece nos definir com triste precisão. Até quando, não sei.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper