Analisando os recentes julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal acerca de terceirização, é possível identificar a reverberação de suas razões de decidir na flexibilização dos critérios para admissibilidade das reclamações constitucionais.
Notadamente, verifica-se um alargamento para admissibilidade de reclamações envolvendo a possibilidade de contratação de pessoa jurídica unipessoal para a prestação de serviços, sem a necessidade de estabelecimento de vínculos empregatícios.
Os principais pontos de debate que decorrem da observância dessas decisões e o ajuizamento de reclamações são:
1) a generalização da liberdade contratual para a prestação de serviços;
2) o esvaziamento das competências da Justiça do Trabalho na apreciação das premissas fáticas caracterizadoras da relação laboral;
3) a invasão nas atribuições administrativas da Administração Tributária em casos de desconsideração de negócios jurídicos simulados para se restabelecer as bases tributárias conforme a realidade dos fatos; e
4) a flexibilização para o acionamento direto da Suprema Corte por meio de reclamações.
Reclamação constitucional
Em essência, as decisões objeto analisadas foram proferidas em sede de reclamação constitucional protocoladas perante o STF. Nessas contendas, os reclamantes se insurgem contra atos administrativos oriundos da Receita Federal ou contra acórdãos oriundos da Justiça do Trabalho, alegando-se, em síntese, o eventual descumprimento dos paradigmas firmados nas ADC nº 48, ADI nº 3.961, ADI nº 5.625, ADC nº 66, ADPF nº 324, e Tema 725/RG (RE 948.252).
Apenas para recordar, a ADC nº 48 e a ADI nº 3961 analisaram a constitucionalidade de dispositivos da Lei nº 11.442/2007, que dispõe acerca de transporte rodoviário de cargas, concluindo pela licitude de terceirização da atividade, diferenciando o transportador autônomo de cargas do motorista-empregado.
Já na ADI 5625, a Corte considerou válidos os contratos de parceria celebrados entre o trabalhador do ramo da beleza, denominado “profissional-parceiro”, e o respectivo estabelecimento, chamado “salão-parceiro”, nos termos da na Lei nº 13.352/2016.
No julgamento da ADC nº 66, o STF asseverou a compatibilidade constitucional da regra do art. 129 da Lei nº 11.196/2005 — a qual permite que a prestação de serviços intelectuais seja tributada na forma da legislação aplicável às pessoas jurídicas —, considerando legítimo que a prestação de serviços de natureza científica, técnica ou artística seja tributada na forma da legislação aplicável às pessoas jurídicas.
Por sua vez, na ADPF 324, definiu-se que a terceirização das atividades-meio ou das atividades-fim de uma empresa teria amparo nos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, os quais asseguram aos agentes econômicos a liberdade de formular estratégias negociais indutoras de maior eficiência econômica e competitividade.
Terceirização
Em alinhamento ao decidido, o Supremo, no Tema 725 (RE 958.252), compreendeu ser lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante.
Em que pese a reafirmação da liberdade contratual pela Suprema Corte, nota-se que, em todos os precedentes vinculantes citados, ressaltou-se que seria nulo o negócio jurídico sempre que utilizado para dissimular relação de emprego de fato existente ou dissimular a ocorrência de incidência tributária, quando se verificar o exercício abusivo da contratação.
Nesse sentido, o voto condutor da ministra Cármen Lúcia na ADC nº 66 adverte que a contratação permanece sujeita “à avaliação de legalidade e regularidade pela Administração ou pelo Poder Judiciário quando acionado, por inexistir no ordenamento constitucional direitos ou garantias absolutos”.
Com esse cenário, não obstante a excepcionalidade do instituto reclamatório, o que vem se observando é o incremento substancial dos ajuizamentos de reclamações perante o STF, visando desconstituir acórdãos trabalhistas (lastreados em premissas fáticas que demonstram a contratação simulada) ou cassar atos administrativos constitutivos de créditos tributários (exercidos em face de identificação de elusão tributária).
Ressalte-se que, salvo em casos pontuais, a quase totalidade das decisões/atos reclamados, sinalizam, de forma minuciosa, a utilização fraudulenta da contratação como mecanismo para burlar a legislação tributária e trabalhista.
Jurisprudência
Segundo a jurisprudência do Supremo, o estreito âmbito de cognição das reclamações tem como consequências a impossibilidade de sua utilização como sucedâneo recursal, a inviabilidade de revolvimento fático-probatório e a necessidade de estrita aderência entra a decisão violada e da decisão reclamada.
Assim, não se mostra adequado desnaturar o instituto excepcional da reclamação, transformando-a em via de acesso direto e ordinário à Corte Suprema, suprimindo a competência das instâncias jurisdicionais ordinárias e administrativas, em claro prejuízo ao devido processo legal e à inércia da jurisdição.
Por exemplo, será que a eventual admissão de reclamação contra ato administrativo, quando alegada violação a decisão proferida em ação de controle concentrado ou repercussão geral, seria adequada mesmo com o eloquente silêncio constitucional e legal quanto à autorização para propositura de reclamatória nesta hipótese? Com o acatamento de praxe aos que divergem, revela-se mais adequada a interpretação restritiva do cabimento.
Basicamente, o cabimento de reclamação para impugnar ato administrativo foi uma inovação decorrente EC nº 45/2004, cujo teor passou a autorizar a sua propositura na específica hipótese em que o ato administrativo esteja a descumprir enunciado de Súmula Vinculante.
Assim, em se tratando de julgamento em ADI, ADC, ADPF e RG, caberia ao interessado impugnar atos administrativos por intermédio dos meios processuais próprios, sejam judiciais ou administrativos.
Apesar da redação do §2º, do artigo 102 da CF/88 impondo à Administração Pública observância às decisões em controle concentrado, tal dever não esvazia a esfera administrativa e menos ainda viabiliza uma “ avenida” direta para o pronunciamento da mais alta corte do país.
Quórum qualificado
Foi para garantir o melhor funcionamento da corte constitucional que o artigo 103-A, § 3º da Carta da República, restringiu o acesso via reclamação às situações de inobservância de Súmula Vinculante, a qual, diferentemente das demais, apresenta a necessidade de quórum qualificado para sua edição.
Em que pese o alinhamento de precedentes dos ministros Luís Roberto Barroso [1], Dias Toffoli [2], Edson Fachin [3], Alexandre de Moraes [4] e André Mendonça [5], interpretando restritivamente os dispositivos constitucionais, verifica-se a necessidade de uniformização do entendimento da corte sobre a possibilidade, ou não, do manejo de reclamações contra atos administrativos em descompasso com decisões em controle concentrado e repercussão geral.
Prosseguindo, um ponto de inflexão que não pode passar despercebido é a eventual admissão de reclamações frente à necessidade de estrita aderência entre os atos reclamados e os julgamentos tidos por violados.
Como registrado outrora, em nenhum dos precedentes que analisaram as possibilidades e efeitos das terceirizações, impediu-se que a autoridade fiscal ou judicial trabalhista apure eventuais vícios, fraudes ou simulações nas contratações efetuadas. De fato, o que o STF entendeu foi a licitude da terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, bem como considerou constitucionais outras formas de relação de trabalho que não a relação de emprego regida pela CLT.
Sempre muito didático, o ministro Edson Fachin, na Rcl nº 60.620, julgada em 09.04.2023, destacou que:
“A contratação de um trabalhador pessoa física como pessoa jurídica por uma determinada empresa (fenômeno denominado PJtização), a existência de fraude na contratação mediante formação de vínculo formal entre empresas, ou ainda, a contratação de um trabalhador pessoa física por uma plataforma digital de intermediação de serviços são hipóteses que sequer foram aventadas quando do julgamento da ADPF 324 ou do Tema 725 de Repercussão Geral.”
A situação de afastamento de contratação abusiva não contraria o Supremo; ou seja, eventuais reclamações baseadas em atos reclamados que demonstrem o abuso de contração não apresentam a aderência necessária aos precedentes para fins de admissão [6].
Os julgados não fornecem lastro para a malversação das normas contratuais, restando viável e pertinente o exame da legalidade pela Administração ou pelo próprio Poder Judiciário.
O fato é que, mesmo que venham se alegando indiscriminadamente o descumprimento aos precedentes citados, o que se constata na quase totalidade dos casos é um meticuloso e judicioso trabalho levado a efeito pela Justiça do trabalho (na constatação dos elementos laborais) e pela Receita Federal, com vistas a combater o planejamento tributário abusivo, que causa graves prejuízos aos cofres públicos.
Nas palavras do ministro Flávio Dino, em seu voto divergente na Reclamação nº 65.484: “os atos administrativos são revestidos de presunção de legitimidade e de veracidade, de regra exigindo produção probatória e exaustiva análise para desconstituição, o que não recomenda o acesso “per saltum” ao Supremo Tribunal Federal, mediante reclamação, e sim a busca das vias ordinárias”.
Ou seja, não há correlação direta entre os precedentes e negócios jurídicos ilegítimos, que visam unicamente a redução tributária e afastamento das normas protetivas dos trabalhadores. Há, apenas, uma clara tentativa de inobservância dos direitos sociais previstos no artigo 6º, e seguintes da CF/88, e os princípios constitucionais da solidariedade (CF, artigo 3º, I), da capacidade contributiva (CF, artigo 145, §1º) e da isonomia (CF, artigo 150, II).
Real fato gerador
A propósito, o ordenamento jurídico confere às autoridades fiscais o devido respaldo para a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos formalmente praticados, a fim de se apurar o real fato gerador, conforme dispõem artigo 142, parágrafo único, e artigo 149, inciso VII, ambos do CTN, bem como o artigo 229, § 2º, do Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto nº 3.048/1999.
O mesmo ocorre nas manifestações oriundas da Justiça do Trabalho, que, nos casos que versam sobre aplicação dos artigos 3º, 9º e 442, da CLT e observância do princípio da primazia da realidade nas relações jurídicas trabalhistas, apresentam os elementos fáticos da relação de emprego para afastar eventuais terceirizações simuladas ou fraudulentas. Importante lembrar que que se mostra inadmissível, e inconstitucional, inviabilizar que a justiça especializada exerça sua competência e declare nulos os atos que contrariem a legislação protetiva.
A liberdade de contratação não pode ser interpretada de maneira a transformar o direito do trabalho em um conjunto de regras aplicáveis de forma subsidiária.
O princípio da verdade real, essencial no direito do trabalho, não pode ter sua força normativa esvaziada por uma simples cláusula contratual que busca afastar a incidência das normas da CLT, sob pena de se mascarar a relação de emprego e comprometer a eficácia das garantias legais que protegem os trabalhadores.
Essa perspectiva enfraquece a proteção legal destinada aos trabalhadores, subvertendo princípios fundamentais que garantem a efetividade das normas trabalhistas e evitam a evasão fiscal.
Não há dúvidas quanto à importância do instituto da reclamação para a preservação da autoridade das decisões dos tribunais. Entretanto, é certo que a falta de convergência nos posicionamentos da Corte e a elasticidade excessiva quanto aos requisitos de admissibilidade em algumas decisões, terão graves implicações para o sistema judiciário brasileiro, prejudicando significativamente o bom funcionamento e a missão do interprete constitucional.
Referência bibliográfica
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MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016.
[1] STF, Rcl 26.650 AgR, 1ª Turma, Rel. Luís Roberto Barroso, j. 13.06.2022.
[2] STF, Rcl 60.348 AgR, 2ª Turma, Rel. Dias Toffoli, j. 25.09.2023.
[3] STF, Rcl 66.422 AgR, 2ª Turma, Rel. Min. Edson Fachin, j. 16.08.2024.
[4] STF, Rcl 64.110 AgR, 1ª Turma, Rel. Alexandre de Moraes, j. 21.02.2024.
[5] STF, Rcl 55.189 AgR, 2ª Turma, Rel. André Mendonça, j. 13.06.2023.
[6] STF: Rcl 46.756 AgR, 2ª Turma, Rel. André Mendonça, j. 02.07.2022; Rcl 52.167 AgR, 2ª Turma, Rel. Ricardo Lewandowski, j. 09.05.2022;; Rcl 61.438 AgR, 1ª Turma, Rel. Min. Cristiano Zanin, j. 09.10.2023.