Reformar ou demolir? Os riscos de uma reforma tributária mal feita

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Fabio Brun Goldschmidt - Advogado
Fabio Brun Goldschmidt - Advogado

Fabio Brun Goldschmidt*

Reformar ou demolir? Essa é a questão central quando se fala em reforma tributária. Tornou-se consenso nacional a busca pela reforma, ao ponto de deixarmos de indagar seu motivo e sua finalidade. Sem que tenhamos essas premissas claras, corremos sério risco de dar meramente uma resposta política a um anseio, que não se traduza em qualquer ganho para a sociedade.

Começando do começo, podemos afirmar que nosso sistema precisa ser reformado porque é caro e complexo. E isso já nos induz à segunda resposta: devemos buscar reformas que solvam ambos ou ao menos um dos problemas. Do contrário, teremos uma vitória de Pirro, que nada auxiliará no desenvolvimento nacional. Precisamente por isso, tenho enérgicas críticas às Propostas de Emenda à Constituição (PECs) 45 e 110 ora em debate, pois ambas tornam o sistema mais complexo e mais caro, adotando a drástica opção pela demolição completa do esquema constitucional de competências impositivas.

Reforma tributária no Brasil nunca evolui por um erro estratégico. As propostas, via de regra, pretendem refundar todo o arcabouço normativo vigente e alterar a carga tributária numa única tacada. E isso esbarra no fato de que Fisco algum quer perder, e nenhuma parcela da sociedade aceita ser mais onerada do que é hoje. Dito isso, salta aos olhos que a reforma deve começar pela parte mais fácil, a simplificação, porque se trata de consenso de todos que, por si só, já resultará em enormes ganhos de eficiência e transparência (com redução dos custos de fiscalização, estímulo à formalização e investimento). Para que uma reforma avance, a alteração da carga tributária deve ser deixada para um segundo momento.

O problema das PECs 45 e 110 é que elas não solvem, antes agravam, as duas máculas do sistema antes mencionadas. Ao criarem um outro sistema, com dois ou três tributos – respectivamente – completamente desconhecidos, tais propostas gerarão, além das inerentes dúvidas e complicações do ineditismo, a obrigação de os contribuintes conviverem, por seis a sete anos, com dois sistemas paralelos durante o período de transição. Ou seja, as famosas 1.500 horas/ano (recorde mundial) que já se gastam no Brasil para administrar tributos serão majoradas ou quiçá duplicadas por vários anos. Afinal, além de dispor de braços para aplicar os dois sistemas simultaneamente, terão os contribuintes de dedicar tempo e dinheiro para a compatibilização de ambos naquilo que se sobrepõem. Isso sem falar em outros efeitos “transitórios” que, nos termos das PECs referidas, podem chegar a 15 anos ou 50 anos (o que, por si só, já evidencia as incertezas que as propostas trazem).

Do palanque, alardeia-se que tais novidades trarão a simplificação tributária pela adoção de uma alíquota única e o fim dos benefícios fiscais. Mas a inverdade dessa afirmação se vislumbra no simples exemplo de que a tributação dos serviços no Brasil é de 5,65% (3,65% de PIS/Cofins, mais 2% de ISS, considerada a alíquota base), e a alíquota prevista para o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) gira em torno de 25% a 30% (a mais alta do mundo), o que já evidencia a impossibilidade de se submeter a tais alíquotas. Do lado dos benefícios fiscais, o agronegócio talvez seja o melhor exemplo da necessidade de que determinados setores tenham, sim, tratamento favorecido, que não pode ser singelamente banido (afinal, estamos tratando de baratear comida).

Também se anuncia que a nova não cumulatividade será ampla e irrestrita, o que é igualmente falso ante o fato de que o principal insumo dos serviços, a mão de obra, não dará direito a crédito. E que aquisições de empresas do Simples (leia-se mais de 52% das carteiras assinadas do País) tampouco darão direito a crédito, o que as levará ao completo alijamento do mercado, posto que todos preferirão comprar de empresas cujos créditos sejam aproveitáveis.

Tenho para mim que, em matéria tributária, devemos respeitar a máxima há muito defendida por Aliomar Baleeiro de que “o melhor imposto é o mais antigo”. Não se trata de conservadorismo, mas da compreensão de que, em temas de extrema sensibilidade, soluções eureka concebidas no quadro negro – em detrimento daquelas moldadas e evoluídas pela prática – não costumam dar certo. Pensem que estaremos jogando milhões de horas de análise e interpretação das normas existentes por magistrados e fiscais de todos os níveis. Milhares de normas regulamentadoras, sobrepostas a partir de racionais e necessidades testados. Estruturas e sistemas de fiscalização e controle construídos ao longo de mais de 40 anos que, bem ou mal, asseguram diariamente que os entes federados possam fazer frente às suas obrigações.

O problema de nosso manicômio tributário é que temos mais de 5 mil leis de ISS, bem como 27 leis de ICMS. E isso poderia ser resolvido por simples lei complementar que unificasse essas legislações, resultando num único ISS e num único ICMS. A unificação da interpretação administrativa desses tributos num órgão central complementaria tal mudança.

O resultado dessas medidas, que não destroem, senão melhoram o sistema atual, seria o fim das desinteligências federativas, com a facilitação da circulação nacional, a transparência e a eficiência decorrentes. Isso com zero atrito em termos de quem ganha ou perde com eventuais mudanças, porque o sistema existente, já compreendido e largamente aplicado, seria mantido.

A não cumulatividade pode ser melhorada? Claro, mas para isso basta uma alteração simples, que adote um sistema de crédito financeiro que também unifique as assimetrias entre ICMS, IPI e PIS/Cofins em torno do conceito de não cumulatividade. O mesmo se diga para a unificação e a centralização das obrigações acessórias.

Nesses moldes, que foram muito bem endereçados pela menos badalada PEC 46, do Simplifica Já, poderemos paulatinamente evoluir e endereçar ajustes pontuais almejados ao seu devido tempo, em discussões circunscritas, sem correr o risco – ou a certeza – de saltos no escuro, com enormes aumentos de carga e litígios como os que as PECs 45 e 110 prometem. A litigiosidade, um dos maiores problemas do sistema atual, é resultado direto da multiplicidade de legislações e entendimentos que acarretam altíssimos custos para o Estado e a sociedade. E ela é indissociável da introdução de exações inéditas, que reinicializam o sistema, sem falar no custo das inúmeras novas estruturas e controles que terão de ser criados. Tábula rasa é medida revolucionária que raramente se amolda à evolução social e à segurança jurídica de que o Brasil tanto necessita. Aprendi com Paulo Brossard que a qualidade de nossos parlamentares não deve ser medida pela quantidade de novas leis que promulgam, mas pela sua capacidade de melhorar as existentes. A sabedoria da máxima de Aliomar Baleeiro precisa ser relembrada, pois estabilidade, em matéria fiscal, é ouro puro, capaz de atrair investimentos e gerar a desejada confiança nas instituições brasileiras.

(*) Advogado

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