Pacificadas no STF, pejotização e terceirização ainda dividem o Carf

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A modernização das relações de trabalho vem alterando os modelos de contratação realizados pelos empregadores. E, dentre as formas utilizadas atualmente, duas se destacam: (1) a terceirização da prestação de serviço, isto é, “transferir parte da atividade de uma empresa — a empresa contratante — para outra empresa inserida em sua cadeia produtiva, denominada contratada ou prestadora de serviço” [1]; e (2) a “pejotização” que consiste na “contratação de trabalhadores por meio de pessoas jurídicas (…)”, isto é, quem exerce a atividade contratada é, em geral, o sócio da pessoa jurídica contratada – “(…) não há uma relação triangular” [2].

É sabido que tais possibilidades de contratação, por muito tempo, foram vistas com maus olhos pelos órgãos de fiscalização e julgadores, pois interpretavam tal sistemática como fraude à relação de emprego e, em última análise, burla à tributação pelas contribuições previdenciárias, parte empresa, previstas no inciso I do artigo 22 da Lei 8.212/91.

STF e terceirização

Ocorre que as relações de trabalho evoluíram, novas legislações se seguiram, tais como a Lei nº 13.429/2017, também conhecida como a Lei da Terceirização, a Lei nº 13.467/2017 (nova CLT), o que levou os órgãos julgadores a se debruçarem novamente sobre as relações de emprego, trabalho e prestação de serviço, reanalisando tais relações jurídicas à luz de novos princípios, para além daqueles protetivos das relações clássicas de emprego.

Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal iniciou a construção de sua jurisprudência atual, em que há clara flexibilização na estrutura rígida do vínculo empregatício à luz dos preceitos constitucionais da “livre iniciativa” e da “valorização do trabalho humano”.

Importante marco para a sedimentação da atual posição da corte foi o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) nº 324/DF, realizado em 30/8/2018, em que o STF entendeu pela constitucionalidade da terceirização da atividade-fim, fixando-se a seguinte tese: “É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, emprego entre a contratante e o empregado da contratada”.

À luz dos princípios da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa (artigo 170 da Constituição), a corte afirmou que não há vedação constitucional à terceirização, pois não se permite a intervenção estatal na forma organizacional das empresas, de maneira a impor um modelo rígido de contratação. “De acordo com tais princípios, compete aos particulares a decisão sobre o objeto de suas empresas, sobre a forma de estruturá-las e sobre a estratégia para torná-las mais competitivas, desde que obviamente não se violem direitos de terceiros.”

Na mesma sessão em que foi julgada a ADPF nº 324, o STF julgou o Recurso Extraordinário (RE) nº 958.252/MG (Tema nº 725 das Repercussões Gerais), de relatoria do ministro Luiz Fux, cuja tese fixada foi: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.

Portanto, a partir do julgamento da ADPF nº 324/DF e do RE nº 958.252/MG, houve uma superação da dicotomia anterior entre proteção do trabalho e os princípios da livre concorrência e livre iniciativa e o STF passou admitir formas de contratações mais flexíveis.

A referendar tal posicionamento, o STF, no Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) nº 791.932/DF (Tema 739), afastou decisão do Tribunal Superior Trabalhista (TST) que deixou de aplicar o artigo 94, inciso II da Lei nº 9.472/1997, pois entendeu que concessionária do ramo de telecomunicação não poderia terceirizar serviço de telemarketing por se tratar de sua atividade-fim. Em tal julgamento, ainda foi declarada a inconstitucionalidade parcial da Súmula 331/TST na parte que limita a terceirização à atividade-fim da empresa, em razão do julgamento da ADPF nº 324/DF [3].

Mais recentemente, o STF julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.625/DF [4], cujo relator para o acórdão foi o ministro Kássio Nunes Marques, afastando o vínculo empregatício nos contratos de parceria estabelecidos entre trabalhador e salão do ramo de beleza, cuja previsão legal se encontra na Lei nº 13.352/2016, uma vez que “vínculo de emprego não deve ser o único regime jurídico a disciplinar o trabalho humano”, pois (….) a produção de bens e serviços ocorre das mais variadas formas(…).

Pejotização

Além dos precedentes que trataram mais diretamente da terceirização, o STF analisou a constitucionalidade da chamada “pejotização”. Tal possibilidade não é recente e já constava da Lei nº 11.196/2005 que, em seu artigo 129, permite que, do ponto de vista fiscal e previdenciário, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, seja realizada por meio de pessoas jurídicas, havendo como limite o abuso da personalidade jurídica nos termos que colocados no artigo 50 do Código Civil [5].

A despeito da previsão legal acima, inúmeros eram os casos em que o Carf e a Justiça Federal desconsideravam o contrato de natureza civil, entre as pessoas jurídicas, para reconhecer vínculo empregatício entre empresa contratante e sócio da empresa contratada, sob o pretexto de coibir fraudes em favor da primazia da realidade e proteção da legislação trabalhista.

Desse modo, a constitucionalidade do artigo 129 da Lei nº 11.196/2005 [6] foi objeto da ADC nº 66/DF de relatoria da ministra Carmen Lúcia e, na ocasião, entendeu-se que a norma “harmoniza-se com as diretrizes constitucionais, especialmente com o inc. IV do art. 1º da Constituição da República, pelo qual estabeleceu a liberdade de iniciativa situando-a como fundamento da República Federativa do Brasil”.

Não haveria, portanto, qualquer conflito entre a lei e a valorização social do trabalho, uma vez que da “liberdade econômica emanam a garantia de livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão e o livre exercício de qualquer atividade econômica, consagrados respectivamente no inc. XIII do art. 5º e no parágrafo único do art. 170 da Constituição da República”.

Nesse julgamento, mais uma vez o STF privilegiou a intervenção mínima estatal e a liberdade concorrencial, seguindo a linha de que o dinamismo imposto pelas transformações econômicas e sociais não permitem que se continue com a ideia rígida de que o trabalho somente seria aquele realizado sob a égide da CLT.

Tal tendência foi verificada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) na pesquisa “Terceirização e Pejotização no STF: análises das Reclamações Constitucionais” [7], que analisou diversas decisões monocráticas reformando acórdãos dos Tribunais Regionais do Trabalho (TRT) e do TST, que não aplicavam o entendimento pretoriano sobre o tema.

Em referido estudo, que analisou centenas de decisões da corte até 20/8/2023, verificou-se que os ministros fazem um juízo flexível de tais precedentes e “há prevalência do exame ampliado de aderência no STF, ao menos em relação ao tema da terceirização e pejotização”.

Em virtude da ampliação das possibilidades de terceirização e “pejotização” nas decisões analisadas, a pesquisa concluiu que a “consequência é admitir reclamações em casos que não são idênticos àqueles nos quais o tribunal reconheceu a constitucionalidade da terceirização de atividade fim”.

Inobstante a pacificação do tema no STF, essa ainda não foi refletida de maneira uníssona no Carf e não são raros os casos em que o órgão desconsidera a contratação via pessoa jurídica, reconhecendo vínculo empregatício e cobrando as contribuições previdenciárias correlatas.

Jurisprudência no Carf ainda é dividida

No âmbito do Carf, analisando apenas acórdãos publicados em 2024, observa-se um relevante número de decisões não aderindo à pacificação do STF sobre o tema. À guisa de exemplo, no acórdão nº 2201-011.417 [8], a 1ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção manteve atuação que cobrava verbas previdenciárias sobre contratos realizados entre empresa de engenharia e empresas contratadas em virtude de, entre outros aspectos, essas se dedicarem à realização do objeto social da contratante (atividade – fim).

No acórdão nº 2401-011.574 [9], por seu turno, houve autuação de empresa que contratava representantes comerciais, por meio de pessoa jurídica, pois constatado vínculo empregatícios em razão da existência de (1) pessoalidade, uma vez que os serviços eram prestados diretamente pelos sócios das pessoas jurídicas contratadas; (2) natureza não eventual em face da verificação da necessidade de permanência dos serviços durante o período autuado; (3) subordinação, tendo em vista que os representantes comerciais tinham meta mínima e máxima de venda, podendo ser punidos com dispensa por justa causa; e (4) onerosidade pela existência de pagamento de notas fiscais.

Ao enfrentar o tema, a 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 2ªSeção do Carf analisou sobretudo a existência de subordinação entre os representantes comerciais e a empresa contratante, mantendo a autuação fiscal.

Chama atenção ainda o Acórdão nº 1301-006.716 [10], em que a 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 1ª Seção do Carf confirmou a autuação para cobrança de IR/Fonte em virtude da existência de relação de emprego entre empresa contratante e os sócios de pessoa jurídica prestadoras de serviços editoriais e jornalísticos.

De fronte a essa postura combativa do Carf, deve-se destacar que, recentemente, o STF, em decisão monocrática proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, e amplamente noticiada em meios de comunicação, julgou procedente a Reclamação Constitucional (Rcl.) nº 65.484 /DF [11] para afastar acórdãos administrativos, que haviam reconhecido vínculo empregatício entre emissora de televisão e artistas contratados como pessoas jurídicas, para o fim de realizar cobrança de contribuições previdenciárias e IR/Fonte.

Na apreciação da reclamação, o relator consignou que os acórdãos exarados pelo Carfnão somente vulneram o quanto decidido na ADC 66/DF, mas toda a jurisprudência mais recente do STF, incluindo os julgamentos da ADPF 324, da ADC 48, da ADI 3.961, da ADI 5.625, bem como o Tema 725 da Repercussão Geral.

No entendimento do ministro Alexandre de Moraes, a jurisprudência atual da corte permite “(…) o reconhecimento da licitude de outras formas de relação de trabalho que não a relação de emprego regida pela CLT, como na própria terceirização ou em casos específicos, como a previsão da natureza civil da relação decorrente de contratos firmados nos termos da Lei 11.442/2007 [e] (…) da Lei 13.352/2016”.

Sublinha-se, no entanto, que há precedentes do Carf que observam a atual jurisprudência do STF e aplicam o entendimento mais elastecido a respeito da flexibilização do regime de contratação do trabalho. Nesse sentido, são os acórdãos 2402-012.457 e 2402-012.439.

Cita-se ainda o recentíssimo acórdão nº 2401-011.577 [12] da 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 2ª Seção do Carf, em que foi cancelada a atuação para cobrança de contribuições previdenciárias sobre as verbas pagas a representantes comerciais.

Na visão do relator, conselheiro José Luís Hentsch Benjamin Pinheiro, não há subordinação na mera fixação de metas aos representantes comerciais autônomos, uma vez que é “razoável, em face da necessidade de se modular as vendas à capacidade de produção da contratante, estando tal cláusula contratual perfeitamente alinhada ao conceito jurídico de coordenação”.

Considerações finais

Em conclusão, a jurisprudência atual do STF é no sentido de que a modernização das relações do trabalho, em uma economia cada vez mais digital e integrada, não permite que permaneçam intervenções estatais que enrijeçam as formas de organização empresarial e os novos modelos de negócio.

Desse modo, o STF entende que tanto a terceirização como a “pejotização” não precarizam as relações de trabalho e, pelo contrário, contribuem para a realização dos princípios fundamentais da livre iniciativa e livre concorrência, vetores da ordem econômica nacional (artigo 1º, inciso IV cc. artigo 170 da Constituição Federal).

Não obstante a pacificação do tema pelo STF, há ainda precedentes do Carf que insistem em reconhecer vínculo empregatícios nessas formas de contratação sob o pretexto de coibir fraudes em favor da primazia da realidade, lançando contribuições previdenciárias e IR/Fonte sobre as verbas pagas nas contratações via pessoas jurídicas.

Destaca-se que, nos acórdãos analisados, há um tom casuístico no reconhecimento de vínculo de emprego para fins fiscais, adotando critérios que o STF superou com sua mais recente posição. Desse modo, espera-se que o Carf também adote a ideia flexível de relações de trabalho, afastando a cobrança de contribuições previdenciárias e IR/Fonte sobre contratos de terceirização e “pejotização”.

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[1] Trecho proferido no voto do Min. Luís Roberto Barroso na ADPF nº 324/DF (ADPF 324, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 30-08-2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-194 DIVULG 05-09-2019 PUBLIC 06-09-2019)

[2] Estudo “Terceirização e Pejotização no STF: análises das Reclamações Constitucionais” elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) Disponível em https://repositorio.fgv.br/items/b8957d04-ce85-4a97-8cf9-3c663336932b (acesso em 11/04/2024).

[3] A possibilidade de terceirização foi ratificada no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (“ADC”) nº 48/DF, em que se afirmou ser constitucional a contratação, sem configuração de vínculo empregatício, de pessoas jurídicas por transportadoras para o transporte de carga (Lei nº 11.442/2007).

[4] Sessão do Tribunal Pleno de 28/10/2021.

[5] Art. 129 da Lei nº 11.196/2005.

[6] Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.

[7] Op. cit. nota 2.

[8] Acórdão nº 2201-011.417, Relator: Fernando Gomes Favacho, 1ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção, Data de Publicação: 14/03/2024

[9] Acórdão nº 2401-011.574, Relator: Miriam Denise Xavier, 1ª Turma Ordinária da Quarta Câmara da Segunda Seção, Data de Publicação: 18/03/2024

[10] Acórdão nº 1301-006.716, Relator: Lizandro Rodrigues de Sousa, 1ª Turma Ordinária da Terceira Câmara da Primeira Seção, Data de Publicação: 09/02/2024.

[11] Rcl 65484, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, Decisão Monocrática, julgado em 21/02/2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe PUBLIC 26/02/2024.

[12] Acórdão nº 2401-011.577, Relator: José Luís Hentsch Benjamin Pinheiro, 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 2ª Seção, Data de Publicação: 04/04/2024

Ana Paula M. Costa Baruel

é bacharel em Direito pela Universidade Católica de Brasília, pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e sócia responsável pelo contencioso judicial e administrativo do escritório Baruel Barreto Advogados.

João Luiz Vidal Jr.

é bacharel em Direito e Jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduado em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e advogado associado no escritório Baruel Barreto Advogados.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-abr-28/pacificadas-no-stf-pejotizacao-e-terceirizacao-ainda-dividem-o-carf/

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